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CARNAVAL CIVILIZA O BRASIL

  • Foto do escritor: martinmezza
    martinmezza
  • 18 de fev. de 2023
  • 6 min de leitura

O carnaval sempre chega, e com ele se apresentam os sentidos, conflitos e enigmas - históricos e presentes – das sociedades e da própria condição humana. Os sentidos e significados que surgem no período que vai de quinta-feira até quarta-feira de cinza, mudam o tempo todo, se combinam e desaparecem para depois reviver. Essa experiência anual de sentidos nos possibilita um diálogo renovador com os fatos de nossa existência.


O carnaval não sempre foi o mesmo, nem tampouco será sempre como o conhecemos hoje. Começou na Grécia no 600 a.C como culto em agradecimento a seus deuses pela fertilidade do solo. Mas não ficou preso a esse sentido original, foi mudando tanto por seu próprio percurso como pelas diferentes culturas e instituições sociais que lhe influenciaram. Na antiguidade foi composto por grandes e alegres festas onde se comia, bebia e dançava para lidar com as fortes restrições morais, e, assim, facilitar o acesso direto aos prazeres. Depois assumiu uma conotação religiosa – Católica – e representou o "adeus à carne", do latim "carne vale" que, na verdade, é o que define o termo "carnaval". Já no período renascentista, os bailes de máscaras, as fantasias e os carros alegóricos se incorporaram às diversas festas que aconteciam no período carnavalesco, aproximando-se ao seu formato atual.


No entanto, foi na primeira metade do século XIX que se consolidou o que se pode chamar: “O carnaval moderno”. A cidade de Paris, charmosa e enfeitada com a dupla moral da sociedade vitoriana foi o modelo no qual se inspirou esta modernização: o luxo e a sofisticação, própria da nova burguesia capitalista que gostava tanto da moral como dos excessos da festa, trouxe majestosos desfiles, suntuosas e criativas fantasias, junto com as brincadeiras denominadas de familiares.


O costume de brincar nas festas carnavalescas surgiu no Brasil pelas mãos dos portugueses com o nome de entrudo. Este termo compreendia uma variedade de brincadeiras e diversões que o espaço social nacional terminou por polarizá-lo em entrudo familiar e popular. O primeiro se dava na família, dentro das casas “senhorais”. O segundo, por sua vez, acontecia nas ruas do “povão”. Tal separação se assentava na divisão entre o espaço público e privado própria do desenvolvimento da modernidade. Mesmo que o entrudo tenha desaparacido logo após uma forte campanha nas primeras décadas do século XX, alguns inteletuais reconhecem sua continuidade nas brincadeiras mais agressivas do carnaval baiano (a pipoca) e na folia de Olinda (o mela-mela). Podemos pensar que essa continuidade nao é por conta das qualidades intrínsecas das brincadeiras, senão pelos individuos que as realizam e pela profundização na divisão (reorganização) entre o espaço público e privado.


Então, como a história nos ensina, o carnaval se compôs de várias festas e de vários sentidos que estão sujeitos à relação dialética com a vida social e cultural. Por isso, o carnaval na modernidade não somente se compõe pela multiplicidade dos sentidos históricos, como também, pelos outros sentidos da era moderna. Qual é esse outro sentido efeito da relação da festa do carnaval com a vida atual? Este sentido já está antecipado no título do artigo. O carnaval de hoje, pelo menos o carnaval baiano que é o que conheço e estimo, está organizado como um espaço civilizatório. Espaço que tem como símbolo essencial à máscara (fantasia), que priva o excesso individual que corrói a sociedade atual. Para respaldar estas afirmações nos servimos das ideias do sociólogo Zygmunt Bauman:


“...não fale com estranhos, que antes era a defesa dos pais para com os filhos indefensos, tornou-se – na atualidade – o objetivo estratégico da normalidade adulta.” (Bauman, Z. 2003).


Dessa forma, o autor identifica o efeito patológico da sociedade moderna. Dita sociedade reproduz até o infinito a separação do público e o privado, provocando uma modificação nas formas de vida social e, por tanto, das interações e relações entre as pessoas. Consequentemente, o cidadão da metrópole é efeito da grande urbanização do “progresso”, da revolução industrial, e da acumulação do capital. Na cidade não só se acumula capital, também se acumula pessoas, gente! Segundo Richar Sennett, os espaços urbanos estão formados pela soma das individualidades que se amontoam, se conglomeram, mas não interatuam, tornando-se cada vez mais individuais e, portanto, mais estranhas.


A circulação pela cidade faz que seja habitual, cotidiano, natural, o encontro com estranhos. A maioria dos espaços públicos atuais – sem falar da quantidade crescente dos privados – por onde circulamos diariamente estão desenhados pela indústria do consumo e voltados para a projeção da individualidade. Conforme os autores citados, estes espaços são públicos mas não civis. Neste âmbito, onde todos circulam cada vez mais rápido, os encontros são breves e superficiais, com a individualidade bem colada ao rosto. Pode-se pensar no shopping ou no Facebook, como expressões máximas do consumo isolado e da individualidade. No primeiro, templo do consumo, permite-se a reunião de muitas pessoas que não interatuam além do consumo. No segundo, se destaca pela extrema e ilusória liberdade que promove a exposição da privacidade e, às vezes, a pretendida e nem alcançada, individualidade.

Então, o que é a civilidade nestes tempos? Com certeza, não a pensamos no sentido clássico que interpreta que existem indivíduos ou povos civilizados e outros bárbaros, selvagens, ainda por civilizar-se. Ideia esta que serve para estigmatizar e dominar, ao mesmo tempo que anular a alteridade e as diferenças culturais, por meio da renovação das duas estratégias utilizadas pela humanidade ao longo do tempo, segundo entende o grande pensador francês, Levi-Strauss. Estas estratégias são expressadas pelas tendências antropofásicas, que consistem em ingerir ou devorar corpos estranhos para que se tornem idênticos (consumo massivo e mercantil do carnaval que, num momento, ameaçou os movimentos afros e que continua ameaçando o sentido cultural do carnaval baiano); e antropoêmicas, que tentam interditar o espaço mediante o aprisionamento e até assassinatos (corda dos blocos, segurança nos camarotes, e as lamentáveis mortes cometidas pelas mãos civil ou do Estado).


No entanto, a civilidade que estamos tratando aqui não é propriedade do indivíduo, aliás, ao contrário: antes de tornar-se individual é preciso encontrar-se no espaço social. Neste sentido, é que o carnaval se converte, ou pode fazê-lo, num espaço civil, e, assim, civilizar o Brasil. Nos dias de festa temos a possibilidade de compartilhar a vida enquanto pessoas públicas. É dispensável identificar-se, falar para todo mundo quem somos, onde moramos, qual é a nossa classe social, que pensamos, quais são nossos sonhos e frustrações. Tampouco é necessário expor a intimidade dos nossos sentimentos. Em definitiva: a pessoa não está obrigada a tirar a sua máscara carnavalesca, que alivia o peso que o “Eu” tem adquirido na sociedade contemporânea.

Durante o carnaval a cidade se transforma. Há uma interrupção no tempo que produz um intervalo das relações e uma alteração nas regras que governam a vida cotidiana: velocidade, brevidade dos encontros, ocupação, trabalho e aperfeiçoamento pessoal permanente. Reconstrução tempo-espaço, que habilita perder-se na multidão, bater-papo, comer, beber, dançar, brincar, namorar, conhecer; e, definitivamente, viver no povo, como povo...! Esta festa popular, a diferença dos shopping´s e de outros templos do consumo que pretendem eliminar as diferenças sociais na identidade do consumidor, não deixa esquecer aos “estranhos”. O carnaval faz do espaço urbano um lugar mais social, onde os estranhos têm chances de se conhecer, de compartilhar, e de se encontrar por fora das suas individualidades. Isto nos aporta civilidade e nos protege do excesso mortífero da individualidade, além de nos ensinar as habilidades que necessitamos para levar adiante esse encontro cotidiano com a alteridade dos outros e de si mesmo.


“O propósito da civilidade é proteger os outros da carga de si mesmo (...) esperando que o propósito seja recíproco” (Bauman, Z. 2003).


Por isso, o elemento estrutural do carnaval, o seu símbolo, é a máscara. As máscaras permitem uma sociabilidade por fora de todo o excesso de individualidade e dos sentimentos privados das pessoas. Utilizada como acessório para cobrir o rosto, marca natural da individualidade, facilita a transformação, a passagem do espaço privado ao público; ou seja: do “eu” ao “você” e daí ao “nós”. Tal como dizem os belíssimos versos da canção de Chico Buarque, Noite dos Mascarados:


“Quem é você? / Advinha se gosta de mim. / Hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim: Quem é você? / Diga logo / Que eu quero saber o seu jogo / Que eu quero morrer no seu bloco / Que eu quero me arder no seu fogo... / Mas é Carnaval, não me diga mais quem é você / Amanhã tudo volta ao normal / Deixa a festa acabar / Deixa o barco correr / Deixa o dia raiar / Que hoje eu sou da maneira que você me quer / O que você pedir, eu lhe dou / Seja você quem for / Seja o que Deus quiser / Seja você quem for / Seja o que Deus quiser.”


Um canto ao carnaval. Uma aula de civilidade que nos ensina como nos encontrar e interatuar com os outros, com os estranhos que somos em nossa própria pele/cidade. Dois estranhos que se encontram, ainda presos na vida cotidiana e cheios dos excessos do individualismo pedem – exigem – que a identidade apareça: “Quem é você?”. Mas, o carnaval todo, condensado na magia da máscara, resiste ao embate da privacidade e da individualização, permitindo outra artiuculação da diferença. Enigma da máscara que consegue inverter realidade e fantasia num encontro mais real que aquele do cotidiano:


“Mas, é carnaval não me diga mais quem é você; Deixa o dia raiar; Que hoje eu sou da maneira que você me quer.”

 
 
 

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