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LACAN AO MOLHO LAMBÃO

  • Foto do escritor: martinmezza
    martinmezza
  • 19 de mar. de 2024
  • 8 min de leitura


Meu caro amigo me perdoa, por favor, se eu não lhe faço uma visita...

 

“Se estou sendo lido é porque foi aceito meu posto temporário de representante do leitor no livro”. Sem dúvidas, Ricardo Goldenberg tem as credenciais suficientes para ocupar a função – impossível – de ombusman do campo psicanalítico. Entretanto, mesmo ostentando essa capacidade, a representação do leitor ao interior do livro “Desambiguar Lacan de Freud”, pode requerer que sejam debatidas algumas posições ­– um mínimo diálogo com os organizadores do livro sobre alguns aspectos do exercício da função. Diálogo que, segundo o escrito, se deduz não acontecido e que agora, tardiamente talvez, me proponho reanimar.


Nas primeiras linhas de “Lacan em sua tinta”, Ricardo mostra as suas cartas. Anuncia seu “desconhecimento” tanto dos organizadores quanto do conteúdo do livro. Motivo pelo qual, diz que pretende limitar sua análise ao título do livro. Não caberia aqui, nesse hipotético diálogo com os organizadores, desambiguar ignorância de desconhecimento? – não preciso explicar o sentido de tal noção na literatura psicanalítica. Ricardo ignora ou desconhece? Alguém que desconhece, pode ocupar corretamente essa função de ouvidor geral? Caso seja ignorância, não seria oportuno que os organizadores reflitam sobre as condições mínimas capazes de interpelar o desejo de saber? Dessa maneira, sem nenhum reparo, segundo deduzo, meu caro amigo continua livre e solto na sua escolha de não somar, de “não acrescentar mais um capítulo ao corpo do volume”. No seu lugar, apresentará a conjectura da enunciação do livro. Não imagino nenhuma consulta sobre esse andar livre e solto. E não apenas pelo aparente brilho dessa marcha, senão, porque quem faz parte do campo psicanalítico não pode ignorar as razões já declaradas pelo próprio protagonista. Porém, me chama a atenção que não se solicitem as razões de ter escolhido “não acrescentar mais um capítulo ao corpo do volume”.


Alguém que se propõe debater na ordem da enunciação tem que, no mínimo, poder dar conta da sua enunciação ou aceitar ser interpelado no mesmo nível.


A pergunta que, sempre sob minha leitura, faltou formular é: essa escolha é a melhor forma que se tem para contribuir com a coletânea? Por que não somar ao volume se, eu sei disso, ele compartilha muito da crítica dirigida ao “freudolacanismo” e entende que “desambiguar” e “desler” não se opõem de forma alguma? De qualquer maneira, os leitores têm o texto explícito do ombusman, caso desejem (re)interpretar-se. O que fica ainda mais enigmático são os motivos dos organizadores do livro.


Por tanto, segue minha réplica à interpretação da enunciação conjecturada.


De que se (des)gosta? O nosso ouvidor geral nos comunica que não gosta da palavra “desambiguar”. Há que reconhecer que, ainda mais no português, não é muito bonita mesmo. Contudo, tampouco podemos deixar de fazer notar que se trata do mesmo prefixo utilizado para nomear seu projeto (desler Lacan). Segundo meu entendimento há um primeiro problema nessa interpretação desgostosa. O nosso ombusman confunde a parte (“linguagens artificiais” – teorias neste caso) pelo todo (“línguas naturais”) e acaba fazendo um elogio, desnecessário, da ambiguidade. A proposta da desambiguação, pelo menos da qual eu faço parte e pela qual fui convidado como autor desta coletânea, não nega e muito menos anula, a polissemia da “língua natural”. Do que se trata é de distinguir e precisar, para melhor desenvolver, conjuntos de ideias articuladas nas redes de conceitos de pelo menos duas teorias (“linguagens artificiais”). Acaso isso não é o que Ricardo faz, por exemplo, com a noção de gozo?


Do que se trata não é de anular nenhuma ambiguidade da língua natural, senão, da linguagem teórica dos analistas. Aquela linguagem da qual se ocupou Lacan ao abandonar, reformular e criar conceitos, mas também ao produzir centenas de neologismos – acaso, apenas por citar um exemplo, todo o trabalho sobre o conceito de pulsão não foi para desambiguá-lo, diferenciá-lo, não o confundir com o de instinto ou com uma força misteriosa que vem das profundezas do corpo?


Em definitiva, trata-se de um trabalho sobre a linguagem teórica da psicanálise, aquela da qual nosso ouvidor geral ostenta uma linda camisa com uma posição ainda mais radical da qual se critica: “Morte ao lacanês”.


Para criticar a desambiguação se cai, indevidamente, sempre segundo meu entender, no polo oposto. Dessa forma, ao pretender argumentar que o ensino (pesquisa) de Lacan explora a ambiguidade da língua (haveria que olhar mais de perto as possíveis diferenças entre ensino, teoria e obra) e que isso anularia qualquer coerência de um projeto desambiguador, se diz que Freud fez um pacto com a boa pesquisa (conceitos claros e distintos). Meu caro ouvidor, por acaso está desambiguando estas pesquisas? Não importa. Desconsidere esse golpe baixo. O que me interessa dizer é que mesmo reconhecendo na obra de Lacan uma exploração da ambiguidade entre “língua natural” e “língua artificial” (linguagem teórica), entre neologismos e conceitos, ou seja, levando ao extremo a inexistência de metalinguagens, mesmo assim, entendo que não se pode fazer disso um simples elogio. Isto, porque também está a razão de um fracasso (o fracasso de uma razão) e toda a questão sobre o lugar da formalização no desenvolvimento e na transmissão da teoria psicanalítica.


Continuando nessa linha – o elogio da ambiguidade – meu interlocutor faz uso do argumento borgiano dos precursores. “Gosto da ideia borgiana de Lacan ter gerado seus precursores, como Kafka (ou Freud) os dele”. Essa historização, que daria num lacanofreudismo, bem sabe meu interlocutor que foi descartada pelo próprio Lacan ao excluir dessa lista de precursores ao próprio Freud –Platão era lacaniano, não Freud. Aqui o tempo que requer a historização do saber psicanalítico não é borgiano, segundo entendo. Freud é um precursor de Lacan e de qualquer outro psicanalista (Ferenczi, Klein, Winnicott, etc.) por ter aberto um campo, um sulco no mundo das ideias. Isto não está em questão. O que se coloca em debate é a relação entre as ideias articuladas por cada teoria. Este reconhecimento – que na psicanálise há várias teorias – é a prova mais radical de uma leitura histórica.  


“Freud, de forma contrária a um número de pessoas prodigiosas, de Platão a Tolstoi, Freud não era lacaniano. Porém, nada me impede supor-lhe meus três, R.S.I. - casca de banana enfiada debaixo de seus pés - para ver como se sai do embaraço” (14 de janeiro de 1975).


Antifreud. Colocar uma casca de banana nos pés de Freud é ir contra Freud? Pedir uma digna sepultura para o pai da psicanálise é antifreudismo? Falar dos nomes do pai é a manifestação do ódio ao pai da psicanálise? Bom, Lacan o fez. Foi acusado de antifreudismo e teve questionada sua função de analista – ele chamou isso de excomunhão. Nesse mesmo ano (1964), dizia que era sintomático que Freud seja o único em criar e desenvolver os conceitos fundamentais de uma ciência. Essa é a verdadeira solidão em nosso campo, o verdadeiro amor-ódio, os filhos de um pai que imaginam totêmico.


Então, como se saiu Freud com essa casca de banana (R.S.I)? No final da sua obra, Lacan entendia que não muito bem. “Meus três [R.S.I.] não são os dele [id-ego-superego] (...). Freud é egocêntrico”. Ou seja, psicologia do eu. Mas ele disse, fora do freudismo, “eu sou freudiano”. Egocêntrico? Fala sério, se diz na Bahia. De qualquer maneira, tem os que entendem que Freud se saiu bem. Que sempre se sai bem. Que ainda surfa nessa casca de banana lançada por Lacan. Desambiguar supõe o reconhecimento dos tropeços e, porque não dizer também [porque um pode acabar sendo acusado de antifreudismo], dos fenomenais tombos do pai da psicanálise.


História, revolução e paradigma. O que me toca. Aqui já não é a qualquer enunciação à qual Ricardo se dirige. Tampouco se ajusta à análise do título do livro (desambiguar), como mencionado; e tampouco ignora a existência do livro: Lacan. A revolução negada. Esse livro, não desconhece as ideias de Lacan sobre revolução e subversão. Porém, entende que esse “astro” (Lacan) não está sozinho no cosmos e que a acepção dada à revolução não é das melhores quando se trata de pensar a história do saber psicanalítico. Como disse acima, tampouco acho que a concepção borgiana dos precursores seja indicada. Quando pensei no título do livro “Lacan. A revolução negada” quis indicar com esse termo (revolução) que submeteria o saber analítico ao saber da epistemologia ou da história da ciência. Então, como pode dizer o nosso ouvidor geral que isto significa um tratamento a-histórico ou supor que acreditamos que não existe nenhuma relação entre Freud e Lacan?   

Uma revolução não é apenas o que Lacan diz que é, nem o que exprime uma análise etimológica, por mais erudita que se imagine. Uma revolução também é um conceito. Então, se tanto se advoga por não deixar sozinho Lacan, por que negar ao saber psicanalítico a possibilidade de ser pensado com as referências que se utilizam para outros saberes? As noções de paradigma e de revoluções são uma modalidade – histórica – de ler o que acontece com os saberes, que podemos adjetivar de científicos. A revolução, a mudança de paradigma, não nega nenhuma história e muito menos diz que não existe nenhuma relação entre paradigmas diferentes.


Agora, posso me imaginar muito bem o cansaço de Kuhn quando tinha que se pronunciar uma e outra vez sobre este ponto. Ao contrário do que se quer criticar, se trata de um conceito que inclui a ruptura para pensar o devir – histórico – dos saberes. Ou seja, vem dizer que não necessariamente há uma relação por continuidade (freudolacanismo). Que a relação entre dois momentos de um determinado campo de saber pode estar marcada pela ruptura (Freud /Lacan). Nesse sentido, revolução não é retorno ao mesmo lugar, é incomensurabilidade entre uma linguagem e outra. As teorias de Freud e de Lacan são incomensuráveis. Isto quer dizer que não tem relação? Que Freud não foi seu precursor? Não. Quer dizer que o projeto de Lacan de pegar Freud pelo avesso, de criticar radicalmente Freud, de colocar uma casca de banana nos pés, acabou por produzir (essa é a leitura proposta ao debate) uma incomensurabilidade. Quer dizer que não podem ser comparadas, que não tem nada em comum, um temor obsessivo à contaminação? Não. Quer dizer que quando consideradas em continuidade – coisa que se pode fazer –, quando ficam ambíguas, se perde parte significativa de ambas as teorias.


Contudo, não deixo de reconhecer para meu interlocutor que ao redor (ambi) de tudo isto, existe algum problema.


A descrição “demasiado ódio denuncia amor imenso” ou “filhos que se imaginam separados do pai” não me parece ser muito precisa. Esse sujeito da enunciação que se quer alcançar e que não pode ser tomado como o representante do projeto da diferença entre as teorias de Lacan e Freud, pelo menos sem considerar a usurpação, não pode amar e não sabe odiar. Tampouco se imagina separado. Ao contrário, está separado e se imagina junto. Esse sujeito não foi expulso de nenhum lugar aonde possa querer voltar. Nasceu e ficou ao redor (ambi), ambigere, duvidoso, aqui e ali, nem aqui, nem ali. Então, o prefixo que melhor o designa não é αντί, mesmo que às vezes possa se fantasiar com ele para evitar escancarar o desamparo e o descompromisso que implica viver no local designado pelo prefixo “pós”. Esse sujeito achou um lugar junto às portas do Éden e como Uriel, vai mudando sua identidade em função da índole, digna ou indigna, que sua imagem especular lhe apresenta.


Parece-me que esse sujeito, separado, desamparado, trata-se dos petits souliers. Não os petits souliers como os conhecemos, senão, a revolta dos constrangidos.


Trata-se de uma das formas que tomou a revolta dos constrangidos contra a democracia antiga que atravessa a organização da instituição psicanalítica. Entretanto, essa revolta contra as modalidades iniciáticas e autoritárias de ingresso à instituição psicanalítica se faz evitando qualquer ingresso, qualquer disputa direta com as suficiências – única hierarquia da classe psicanalítica – e surrupiando qualquer montante de prestígio que fique à disposição. Se antes eram as suficiências os que rejeitavam qualquer signo de insuficiência, agora sãos os incomodados os que não aceitam as (in)suficiências. Porém, esta inversão não provocou nenhuma dialética. Tampouco, pelo menos até o momento, conseguiu articular um discurso capaz de quebrar a lei suprema do silêncio, que reina entre nós. Apenas, graças às novas modalidades do laço social e a sua competência com os novos dispositivos tecnológicos, os incomodados conseguiram transitar melhor esse lugar ilusório destinado aos bem-aventurados, ao bourgeois gentilhome. Desde aí, estoicos ou epicuristas, mas também como os psicanalistas norte-americanos da década do 50, souberam criar uma suposta comodidade nas margens das formas instituídas. Souberam retirar o silêncio do enclausuramento das trocas íntimas e dos limites oferecidos pelas fofocas de corredores, para exercer o controle, reproduzi-lo até monetiza-lo, e assim alcançar visibilidade através dele. De qualquer maneira, ainda se trata do silêncio...

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