Psicanálise: Disneylândia discursiva. Uma bobagem, Dra. Pasternak?
- martinmezza
- 29 de jul. de 2023
- 5 min de leitura

Ainda não li o livro da Dra. Pasternak e de Carlos Orsi. Entretanto, confesso que fiquei muito curioso em saber como uma cientista, de recente destaque, articula uma das mais reiteradas e também, muitas vezes bem fundamentadas - há que dizê-lo - críticas à psicanálise, ou seja, sua complexa relação com a ciência.
Incluirá novos argumentos? Desde que posição epistemológica abordará o problema da cientificidade da psicanálise? Terá uma descrição apurada e atualizada do estado da psicanálise? Considerará as diferenças entre as teorias psicanalíticas? Estes são alguns dos interrogantes que ficarão em reserva até o verão, quando terei algum tempo para me dedicar a leituras não programadas para este ano. Dessa forma, pretendo dar toda a seriedade que merece a questão da cientificidade de nossa disciplina.
Até lá não há muito mais que dizer sobre a crítica anunciada. Porém, temos o anúncio. As declarações que os autores fizeram para um portal de notícias e também, o burburinho que se criou em nossa comunidade – entendo que não é sobre a leitura do livro. Por que esse anúncio? Por que esse burburinho? Ou melhor, que se passa no anúncio e no burburinho?
Parto da premissa que o significante “pseudociência” não pode despertar semelhantes paixões. As diferentes gerações de psicanalistas estão vacinadas contra a dita crítica. A maioria dos psicanalistas gritam, aos quatro ventos, que a psicanálise não é ciência. Então, não há lugar para a fantasia de usurpador. Tampouco acredito que seja um temor pelo recente aumento do prestígio “da ciência” no contexto da pandemia de Covid-19. Todo mundo sabe que esse prestígio não está isento de controvérsias. Por outro lado, a simples menção da posição – política – assumida durante a pandemia por muitos psicanalistas, bastaria para esquivar a excessiva equivalência entre não científico e reacionário. Ficaria clara a distinção – do que já é diferente – entre “pseudo” e “anti”.
E se fosse uma sensibilidade apurada perante uma racionalidade científica que oprime qualquer outra forma de saber? Bom, existem estratégias mais sofisticadas que poderiam ser consideradas. Por exemplo, a estratégia utilizada pelo jornalista da revista Scientific American, John Horgan, no seu livro “O final da ciência!”. Mas também, bastaria lembrar a quantidade de trabalhos que desde as ciências sociais em saúde se ocupam de debater seriamente com a biomédica: Bruno Latour; a ecologia de saberes das epistemologias do Sul; as diferentes formas da antropologia da saúde; e tantas outras. Aqui, no Brasil, o SUS contempla as práticas integrativas e complementares (PICS), que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais. A reforma psiquiátrica brasileira incorpora uma quantidade não menor de teorias, técnicas e práticas não baseadas em “evidências científicas” no cuidado do sofrimento psíquico – a arte, por exemplo.
Mas também, a Doutora Pasternak deve saber isto, que a maioria dos estados do mundo que admitem a ciência (USA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França, Brasil e tantos outros), reconhecem o limite do conhecimento científico e valorizam outras formas de conhecimento. As agências de incorporação de tecnologias médicas em saúde, além de orientar suas decisões por “evidências científicas”, também incorporam: a) as evidências qualitativas por meio de revisões sistemáticas; b) o conhecimento da população que, na literatura científica, é mencionado como ciência cidadã ou evidência social.
Psicanálise, uma promessa de ciência.
Outra maneira fácil de resolver este temor, se houvesse, seria recorrer ao pensamento de Lacan. “Psicanálise, uma promessa de ciência”. Quantas disciplinas funcionaram nas fronteiras da ciência até dar o passo da cientificidade? Ou por acaso, a Doutora acha que a química, a física e a biologia, nasceram com o selo de cientificidade?
Então, não pode ser isto. A menos que se admita na sua negatividade, que atue por ausência, sob a forma da ignorância ou desconhecimento.
Será aquilo que se articula ao significante “Que bobagem”. Refiro-me à listagem de absurdos que não devem ser levados a sério. A cientista nos inclui numa lista bastante diversa que, à primeira vista, não parece tão prestigiosa: dietas de moda, constelação familiar, astrologia, discos voadores, curas energéticas, etc. Não posso omitir - no campo científico não pega bem ocultar dados - que Lacan incluiu, um certo momento ou uma determinada vertente da psicanálise, numa lista bastante parecida: massoterapia e práticas respiratórias para relaxar. Se for este o caso, acredito que não levaria demasiado esforço mostrar as diferenças com os platôs voadores, a massoterapia e as dietas de moda. Inclusive, talvez ganhemos algo ao tentar separar-nos das constelações familiares e das curas energéticas – teríamos a chance de explicitar os preconceitos que foram corrigidos nas teorias do Complexo de Édipo e das pulsões.
Então, talvez seja a ideia de não ser levados a sério. Sério? Bom, pelo menos o procedimento interpretativo, elevado ao status de estratégia política, gira em torno desta oposição significante: bobagem/sério. A operatória dos colegas transforma o signo de exclamação numa vírgula e modifica o lugar do nome próprio. Dessa forma, a cadeia que passa a repetir-se é: “Que bobagem (S1), Dra. Pasternak (S2)”. Não é momento para debater a validade deste procedimento interpretativo. Apenas direi o que todo mundo pode apreciar. Parece ser um procedimento bastante especular. Um jogo para ver quem produz o sarcasmo mais inteligente.

Haverá seriedade após as bravatas da cientista? Haverá vida além do sarcasmo especular? Haverá a esperança de um saber não sabido articulado a essa bobagem, a esse dito tolo, impensado? Parece-me que a “Disneylândia discursiva” nos oferece um caminho. Este sarcasmo, esta gozação, salvando a enorme diferença dos atores e a matéria envolvida, tem a mesma estrutura do deboche que Albert Einstein dirigia aos quânticos. No célebre “artigo de EPR”, Einstein, Podolsky e Nathan, utilizaram o conceito de entrelaçamento quântico para argumentar contra a mecânica quântica; e assim, acabaram por contribuir com a posição que se pretendia criticar. Por tanto, muito obrigado, Doutora.

Para não afastar-nos dos trilhos da ciência, devemos estar atentos e ser capazes de retificar os erros e imprecisões. Nesse sentido, a psicanálise de Freud não é uma “Disneylândia discursiva”, Doutora. A psicanálise de Freud está mais próxima do parque de diversões onde brincam, com maior naturalidade, os biólogos – prova disso é o desenvolvimento da neuropsicanálise. A “Disneylândia discursiva” é de Lacan. E olha que coincidência! No mesmo ano, 1953, em que Lacan levava a psicanálise para o campo da linguagem (onde se funda a cientificidade das ciências sociais); Walter. E. Disney comprava, perto de Anaheim, o terreno para começar a construção do parque. Que conste que falei coincidência e não que ambas as personalidades se encontravam sob a mesma posição dos astros.
Para todos aqueles que vêm para este local feliz: Bem-vindo. A Disneyland é sua terra. Aqui, a idade revive as memórias do passado e a juventude pode saborear o desafio e a promessa do futuro. A Disneyland é dedicada aos ideias, sonhos e a dura realidade que criaram a América, com a esperança de que ela seria uma fonte de alegria e inspiração para todo o mundo.— Walter E. Disney, 17 de julho de 1955
É verdade Doutora, essa chamada não é tão diferente do convite que se faz numa psicanálise. Apenas algumas substituições e correções menores seriam necessárias. Entre sujeito e objeto, entre o sujeito e o mundo não há, não opera, apenas a sinapse química. Toda uma série de fenômenos humanos, que se podem repartir entre as amplas margens da felicidade e a tristeza, ocorrem no buraco que se abre entre sujeito e objeto – as pílulas da felicidade não tem se demonstrado muito eficazes neste terreno. É uma afirmação baseada em evidências. Nesse espaço, os “impulsos” não são necessariamente articulados pelos neurotransmissores. Sim, há uma ordem de realidade humana totalmente atravessada pelas fantasias – acaso Disneylândia não existe? Trata-se de um pseudoparque? Estamos todos loucos? Essas fantasias, essas bobagens, algumas vezes estão soltas pelo parque. Fica fácil vê-las, tocá-las, interagir com elas, são evidentes, são um fato! Em outras oportunidades, aparecem nas margens, desfiguradas, do lado de fora, quase que se as percebe pelo rastro da sua ausência. Aqui se precisa de procedimentos – podemos discutir a qualidade/rigorosidade dos mesmos – para alcançar essa realidade. Perdão, essas fantasias...

Por fim, também podemos perceber que pelo burburinho se passa outra coisa: o compartilhamento, desde posições opostas, claro, do negacionismo. O negacionismo não é da ciência, senão da promessa de cientificidade da psicanálise.
Martín Mezza.
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